terça-feira, 30 de setembro de 2008

Outras feridas


traços de répteis incandescentes pelas dunas, hastes quebradas, excrementos geométricos sinalizando com rigor apertados caminhos
areias de cor indecisa
são bons estes lugares de cinza, para a solidão insuspeita dos pássaros

da boca das areias desmoroando-se irrompem
fosforosos bichos, adocicados corpos, um rosto de fogo encima o leite vagaroso das nuvens
depois, ouvem-se os nomes dos barcos
e do vento uma voz explode, fende, desfaz a tempestade
teu corpo acalma por cima do misterioso espelho

mão na mão, percorremos todas as águas
conhecemos os domínios húmidos dos monstros marinhos
e a loucura dos peixes cegos, que deu nome ao nosso amor e às cidades costeiras
outras feridas alastram subitamente no fulcro da memória
outras noites atravessam-se
semeiam pelo corpo flores e pânico
falo com os barcos postos-a-seco, das salivas marinhas cresce uma quilha enfurecida
a escrita é um marulhar incessante
imito a paisagem como se te imitasse, ou se te escrevesse

teu corpo dilui-se nos ossos da página, contamina as cartilagens das sílabas
resta-me o fingimento sibilante das palavras
caminho pelo interior das dunas, aago o rasto de tinta acetinada, sou terra num texto onde não encontro água
só noite e um rumor imperceptível no coração
mais nada


Al Berto - O Medo

Não, não é cansaço...


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar.
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se descobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.


Álvaro de Campos - Fernando Pessoa

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Franz Kafka vs Praga

"Praga não vai largar-nos. Nem a mim nem a ti. Esta mãezinha tem as suas garras afiadas. É preciso sujeitarmo-nos senão... Devíamos lançar fogo aos seus dois extremos, o Vysehrad e o Hradsechin, e talvez pudéssemos então partir. Pensa nisso daqui até ao Carnaval."

Franz Kafka,

20 de Dezembro de 1902, carta a Oskar Pollak.

A Metamorfose, O Processo, A Colónia Penal, O Castelo... Os escritos de Kafka referem-se a um mundo em que a liberdade se pagava a alto preço. Que é feito desse mundo? Da Praga dos anos de 1910-1921, checa, alemã, judaica, que a pouco e pouco se foi libertando de quatro séculos de dominação austríaca? Quem, entre gente de carne e osso e génios literários, terá instilado em Kakfa aquela trágica coerência que caracteriza a sua obra? Ele foi, sucessivamente, Georg Bendemann, Gregor Samsa, Josef K. e K., o Agrimessor, incorporando-se em cada uma das suas personagens, em contante mutação, sem jamais deixar de ser igual a si mesmo.